É noite de Natal, ou melhor, véspera de Natal. Estamos no dia 24 de dezembro de 1960. Faz um ano, dois meses e quatro dias que meu pai morreu. Lembro bem do dia final da sua vida junto da gente. O seu último cigarro fumado.

Os últimos fios de cabelos brancos tirados pela minha irmã, Maria. Ele sabia que ia morrer naquele dia. Pediu para avisar seus irmãos e outros parentes. Sim, parece que a morte lhe mandou um aviso que aquele era seu dia de despedida. Eu me refugiei junto das bananeiras no fundo do quintal enquanto minha mãe preparava o velório. Mas hoje é véspera de natal e estamos aqui na Igreja Matriz assistindo a “Missa do Galo”. Enquanto o Padre João continua a celebração meus pensamentos retornam ao falecimento do meu pai. Lembro então o chão da sala recoberto com esteiras para que os “rezadores” pudessem ajoelhar e puxarem a reza da novena ao meu pai.

Eram três, mas só me lembro o nome de um deles, João da Carvoaria. Rezam o Pai Nosso, as Aves Maria e terminam com uma oração/canção que não posso me lembrar sem chorar, acho que o nome é Senhor Morto, qualquer coisa assim. Tenho certeza que para sempre quando ouvir essa oração e irei chorar. Mas hoje é véspera de natal e pensando nos “rezadores”, eles me lembram os três reis magos do presépio.

Minha mãe me cutuca para que eu fique quieto para que ela possa prestar atenção no sermão que o Padre João está fazendo. Como a igreja está cheia nós ficamos do lado de fora. Somos minha mãe, minha irmã, meu irmão Benedito, quatro anos mais velho que eu, e meu irmãozinho mais novo, Toninho só tem dois anos, três anos menos que eu. Ah! O irmão mais velho, o Francisco, não está com a gente e eu não sei por quê.
Minha mãe me cutuca novamente para que eu olhe para frente, para o altar da igreja. Ela sabe que estou com olhos presos na fonte luminosa no meio da praça. Suas águas dançantes e coloridas me fascinam.

A missa acabou e agora é hora de voltarmos para a nossa casa no Jardim Paulista. Vamos a pé porque não tem ônibus para lá, e mesmo se tivesse, com toda essa gente aqui que hora chegaríamos? Do centro até o nosso bairro não é longe. O trecho mais difícil é descer a rua, mais conhecida como “Morro do Dom Bosco” e subir a rua da nossa casa, a Rua Genésia B. Tarantino. Minha mãe e minha irmã se revezam para carregar meu irmãozinho. Eu já tenho cinco anos e posso andar, e vamos indo.Ch

egamos e logo vamos para a cama. Amanhã será Natal. Nosso almoço será a abobrinha, que o Benedito achou no fundo do quintal, com arroz e feijão. Foi sorte o mano ter achado essa abobrinha, pois até hoje a abobreira só tinha dado cambuquira. Não tem problema! Sei que nossas vidas serão muito difíceis.

A morte prematura do meu pai, ele tinha 44 anos, será sentida por muito tempo. Mas tenho fé que outros natais virão, e daqui a uma semana já será Ano Novo, 1961. Talvez minha mãe consiga o emprego na fábrica de louça que a nossa vizinha, D. Maria que trabalha lá, está tentando junto ao chefe dela. Minha irmã também trabalha nessa fábrica, mas só o salário dela não dá para nada. É, a vida está muito dura para nós, mas tenho esperança que tudo vai melhorar.

Fonte: rabiscosdomane.blogspot.com.br.

Fotos: O pai do Manoel e seu irmão Francisco.
A família do Manoel: a irmã, a mãe, a avó e o irmãozinho.